Hora de reorganizar a mobilidade urbana
Hora de reorganizar a mobilidade urbana . Boas práticas globais, novas maneiras de se locomover, e uma nova forma de organização das sociedades: entenda como será a mobilidade no pós-pandemia
Para Sérgio Avelleda, diretor de mobilidade urbana do programa de cidades do WRI Global, a reorganização das sociedades e o fortalecimento da economia no mundo pós-pandemia passam pelo fortalecimento do sistema de transporte público. Aqui, no Brasil, não é diferente. “É um momento desafiador, mas também uma oportunidade de repensar todo o sistema, usar a criatividade e fazer diferente. Acredito que o transporte público brasileiro tem mostrado, todos os dias, sua essencialidade e precisa ser apoiado”, afirma.
Hoje diretor de Mobilidade Urbana do programa de Cidades do World Resources Institute (WRI) e sediado em Whashington (EUA), o advogado curitibano Sérgio Avelleda tem extensa carreira na área de transportes e mobilidade: foi presidente do Metrô e da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) entre agosto de 2008 e janeiro de 2011, presidiu o Metrô de janeiro de 2011 a abril de 2012 foi e secretário de Mobilidade e Transportes da Prefeitura de São Paulo entre janeiro 2017 e abril 2018, entre outras funções.
Nesta entrevista ao Mobilidade, Sérgio Avelleda comenta algumas medidas que os países têm implementado, tendências de modais em ascensão e alguns aprendizados que a crise da covid-19 tem trazido em assuntos relativos à mobilidade urbana.
Quais mudanças tem sido observadas no Brasil e no mundo?
Sergio Avelleda: Cada país está em um estágio diferente em relação à contaminação pela covid-19, mas já conseguimos observar certas características comuns. O que percebemos, em um primeiro momento, é que administrar bem o transporte público na crise é fundamental e é muito desafiador: se, por um lado, ele é um ponto de compartilhamento de espaço, uma zona de risco em uma pandemia; por outro, o modal move todas as pessoas e possibilita que todos os profissionais dos serviços essenciais cumpram seu papel neste momento crucial.
Então, percebemos a essencialidade do transporte público. Mas é preciso adequar sua oferta a uma demanda bem menor, com parte da população em isolamento, e tomando muitas precauções para evitar aglomerações.
É um trabalho enorme e, no final essa diminuição, no número de pessoas que não estão usando o transporte público – estima-se que a queda global seja entre 50% a 90% – pode ter consequências desastrosas e, em alguns locais, como no Brasil, isso já está acontecendo: alguns relatórios mostram perda diária de R$ 1 bilhão, porque os custos fixos de pessoal e de ativos continuam.
Esse gap pode levar a uma quebradeira no setor, o que precisa ser evitado a todo custo, porque demora anos para reorganizar o sistema. Como um setor vital, defendo que deve receber ajuda para se recuperar, porque ele movimenta a economia e tem uma capacidade enorme de geração de empregos, fundamental no pós-pandemia.
Que medidas estão sendo tomadas e podem ser boas opções para proteger o transporte público nesse momento?
Avelleda: Nos Estados Unidos, por exemplo, o governo destinou US$ 25 bilhões em ajuda de emergência para as agências de transporte. Essas intervenções são importantes para evitar o colapso nos sistemas no curto prazo, mas é fundamental ter uma estratégia também no longo prazo, levando em conta que o transporte público gera empregos rapidamente, torna as estradas mais seguras, melhora o acesso das pessoas de maneira geral e reduz emissões de carbono.
Tem uma etapa importante, sobretudo nos países que estão estudando ou já colocando em prática o relaxamento do isolamento social, que é a sanitária. Vejo como fundamental a exigência do uso de máscaras, higienização criteriosa dos equipamentos, disponibilizar dispensadores de álcool em gel para usuários, além de medidas adicionais de proteção dos trabalhadores do setor.
E, pensando em como as pessoas podem ser menos expostas no transporte público nos momentos mais críticos, vejo como opções parcerias do transporte público com empresas de aplicativos de roteirização que forneçam com precisão os tempos de chegada e partida de ônibus, entre outras startups, para evitar esperas desnecessárias, e até mesmo incentivo a outros modais.
Em Bogotá, na Colômbia, a ciclovia foi ampliada com dezenas de quilômetros de faixas temporárias, abertas todos os dias da semana neste momento justamente para que as pessoas evitem o transporte público.
Então, não existe uma única solução, mas um conjunto delas, que vão desde cuidados no sistema de transporte e sua flexibilização, com parcerias para melhorar sua eficiência e precisão, até mesmo fomento aos modais de transporte individual, como patinetes, bicicletas e monociclos.
Em relação ao uso de transportes individuais, podemos prever alguma tendência pós-pandemia?
Avelleda: Acredito que pode ser uma opção se as cidades e as pessoas adotarem esses modais; já vemos um movimento muito forte no uso de bikes, por exemplo, no transporte de alimentos e outros itens, mas é importante que a cidade faça o planejamento de sua mobilidade de forma integrada.
Na prática, significa que o plano das ciclovias de São Paulo, por exemplo, deve interligar todas as regiões da cidade e ter conexão com o transporte público. É uma mudança de paradigma, mas também uma transformação na forma como a mobilidade é pensada.
A pandemia tem trazido algum aprendizado no que diz respeito à mobilidade?
Avelleda: Em primeiro lugar, essa situação no mundo todo tem mostrado a relevância do transporte público: enfermeiros, médicos, socorristas, entregadores de comida e outros profissionais continuam chegando a seus locais de trabalho porque o transporte público continua operando.
E é por ter um papel fundamental que defendo que o setor também deva receber ajuda para sua recuperação. Logo mais, o Brasil estará em uma fase de transição, com o começo da flexibilização do isolamento, e o transporte continuará sendo fundamental.
E esse momento de reorganização pode ser uma oportunidade para tratarmos de seus desafios, como o financiamento do transporte público apenas com tarifas, o que não tem se mostrado uma solução viável, sobretudo nos países em desenvolvimento, entre outras questões, como a diminuição de poluição, que também estamos vendo no isolamento.
É necessário priorizar soluções mais sustentáveis, veículos mais limpos, como os elétricos. Então, vejo os programas de recuperação como uma oportunidade para pensarmos o transporte público e, em decorrência, a mobilidade, como uma ocasião para fazermos diferente
“A situação atual tem revelado a essencialidade do transporte público, fundamental para o funcionamento das cidades.”
Sérgio Avelleda
E a questão da segurança no trânsito, podemos prever alguma transformação no mundo pós-pandemia?
Avelleda: Só teremos uma significativa melhora se houver uma redução considerável no uso do carro particular. No Brasil, como em outros países, as cidades pouco movimentadas reduziram os índices de acidentes no trânsito.
Quanto menos automóveis circulam, mais seguras estão as pessoas. Todas as melhorias que comentei no transporte público impactam positivamente a segurança viária. Mas pensar no redesenho das ruas também é importante, ou seja, as cidades têm que incentivar as pessoas a caminhar ou a usar bicicletas.
Mudar o desenho das ruas, dando mais espaço aos pedestres, por exemplo, é o tipo de intervenção barato e rápido que poderia melhorar muito a segurança viária.
Qual sua opinião sobre o projeto cicloviário de São Paulo?
Avelleda: A estrutura cicloviária da cidade avançou bastante – são quase 500 quilômetros –, o que é muito significativo. Mas as ciclovias carecem de melhores conexões, e vejo que a Prefeitura tem trabalhado nesse sentido.
É fundamental que tenha uma rede conectada de ciclovias para que as pessoas possam percorrer São Paulo inteira, todos os bairros. E é muito importante, também, que o transporte público esteja integrado nesse planejamento, de forma que o uso das bicicletas seja articulado com todo o sistema de transporte da cidade.
5 bons motivos para investir no transporte público
Para Avelleda, o transporte público precisa integrar os pacotes de estímulo de recuperação econômica dos países, e as medidas adotadas durante a pandemia devem ser incorporadas ao plano de mobilidade das cidades. Ele menciona os motivos para isso:
1. A demanda por transporte público no início da retomada provavelmente será limitada: haverá a necessidade de um suporte – como ações sanitárias, distribuição de máscaras, campanhas, entre outras medidas – para que as pessoas voltem a ter confiança em dividir o espaço com os demais e isso demanda injeção contínua de dinheiro. Mas será essencial para manter empregos fundamentais para os trabalhadores em uma economia em dificuldade: nos Estados Unidos, por exempo, o transporte público emprega 430 mil pessoas.
2. O estímulo possibilitará a criação de uma infraestrutura de ônibus e trânsito de alta qualidade: com a redução no tráfego de automóveis nos núcleos urbanos durante a pandemia, as cidades têm a oportunidade de usar as vias de forma mais criativa – além de uma infraestrutura espandida para ciclismo e caminhada, outra boa solução seria implementar faixas de ônibus exclusivas, que tornam as viagens mais rápidas e diminuem as emissões de gases causadores do efeito estufa.
3. Investimentos podem ser feitos para a modernização e a eletrificação das frotas de ônibus: com os pacotes de estímulos do governo, existe uma oportunidade de ampliar a eletrificação das frotas de ônibus públicos, medida que tem impacto positivo na qualidade do ar e nas emissões dos gases de efeito estufa.
4. É importante investir em ciclismo e caminhada: por necessidade, na pandemia, o ciclismo e a caminhada aumentaram e mostraram às pessoas que essas são formas perfeitas de se locomover para tarefas essenciais. São modais acessíveis, que promovem estilos de vida saudáveis, geram benefícios econômicos e possibilitam o acesso das pessoas ao transporte público.
5. Fortalecimento da governança: a pandemia revelou a natureza interconectada do mundo moderno e a necessidade de medidas coordenadas – na região metropolitana de São Paulo, por exemplo, existem 39 cidades, cada uma com um prefeito, enquanto o governo do Estado gerencia sistemas interurbanos. É fundamental expandir a coordenação entre todos, usando o imperativo de respostas imediatas à covid-19 como trampolim para abordar outras questões importantes das cidades.De 1 a 5, quanto esse artigo foi útil para você?
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Fonte: Mobilidade Estadão – Jornal O Estado de São Paulo